quarta-feira, 23 de julho de 2014

"Tsunami de meias-verdades"

Há mais ou menos um século, em uma Viena tão ou mais cosmopolita do que qualquer uma das novas cidadelas virtuais, são Freud tentava explicar um fenômeno que já incomodava muita gente: o esquartejamento do homem contemporâneo entre duas forças antagônicas, o corpo e o outro.

Chamadas na época de id e superego, essas demandas ganharam dezenas de nomes ao longo das décadas, mas não perderam importância. Ao contrário, à medida que a superconexão das redes concatena boa parte dos ambientes de interação, cresce a pressão social para um comportamento mais pragmático, funcional, onipresente, onisciente, onipotente e disponível.

Não é mais permitido a um indivíduo razoavelmente integrado estar desconectado ou alheio aos fatos, ignorante de acontecimentos, incapaz de realizar uma tarefa.

O acesso móvel propiciado por tablets e smartphones e o conhecimento instantâneo disponibilizado nos vídeos no YouTube e nos verbetes da Wikipédia acabaram com a época do "não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe". Hoje todos são compelidos a saber, opinar, compartilhar, blogar e retuitar, mesmo que não façam a mais pálida ideia do assunto abordado.

A angústia perante a impossibilidade da empreitada é natural. A ignorância, antes considerada uma bênção, foi transformada em maldição, obrigando a todos que nasçam prontos, especialistas. O resultado, previsível, é um enorme conflito entre demandas e capacidades, obrigando cada indivíduo a empacotar a informação que recebe o mais rápido possível e transmiti-la para grupos cada vez maiores de pessoas que fazem o mesmo, em um tsunami de meias-verdades, preconceitos, informações rasas e citações fora de contexto.

Por mais que entusiastas de mídias sociais classifiquem essa prática como uma formação de opinião mais democrática, inovadora e aberta, a realidade a transforma em um tipo vicioso de fofoca, terreno fértil para todo tipo de boataria, casa de doidos em que todos falam para ninguém escutar.

Na velocidade e na pressão das redes de compartilhamento, a informação gratuita perde seu valor. Sem tempo, foco ou referências de qualidade, não há como estabelecer uma reflexão sólida. O resultado é uma espécie de histeria coletiva, combustível social à espera do primeiro estopim que a incendeie.

A história mostra vários momentos cuja energia foi inversamente proporcional à razão. Por mais que tivessem potencial construtivo, a maioria foi aniquilada ou acabou em regimes totalitários.

Dicionários e enciclopédias foram feitos para serem consultados, não decorados. Quando a opinião de especialistas é trocada pela voz coletiva das ruas, corre-se o risco de ignorar os fatos para perpetuar mitos e falsas verdades. Não há revista científica que comprove os malefícios do leite com manga, mas todos ouvimos essa história "em algum lugar" parecido com o Google.

A única saída possível para preservar a sanidade está em desenvolver o espírito crítico. Isso não demanda atitudes reacionárias, mas uma seleção da informação recebida, da relevância de sua fonte e, acima de tudo, se cabe a você tomar alguma atitude com relação a ela ou se é mais saudável ignorá-la. 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Liderança analógica

Em sua lista das dez principais tendências de tecnologia para 2014, a IDC, uma das principais consultorias do mundo na área, indica que 80% das empresas que lidam com consumidores terão de integrar seus sistemas de informação a redes sociais abertas, como Facebook e Twitter.

Bancos de todo o mundo estudam como transformar smartphones em meios de pagamento que substituam os cartões e o dinheiro de papel, o chamado mobile banking. Esses são exemplos de como o mundo digital está entrando nas empresas e transformando os negócios.

Como consequência, compreender os hábitos digitais de consumidores e vislumbrar as oportunidades de criação de produtos e serviços que as novas tecnologias trazem são habilidades esperadas de profissionais. Quem é capaz de sugerir inovações se destaca no mercado.

As empresas entenderam isso, mas sofrem com um problema: muitas mantêm no topo líderes analógicos, distantes da realidade digital e incapazes de detectar o valor das ideias de suas equipes. Uma pesquisa da firma de recrutamento de executivos Russell Reynolds com 300 empresas e 3 000 presidentes e executivos mostrou que apenas 18 companhias tinham diretorias altamente digitais.

O mesmo estudo mostrou que 210 empresas não tinham ninguém na cúpula com ligação com o mundo tecnológico. “A informação está redesenhando as empresas, e quem não se transforma fica para trás”, diz Javier Zamora, professor da Iese Business School­ de Navarra, na Espanha.

A situação no Brasil é semelhante. Embora existam exemplos de ações digitais muito bem-sucedidas, boa parte das empresas convive com uma diretoria pouco familiarizada com as novas tecnologias. São times que foram montados levando em conta as competências em outras áreas. Conhecimento digital não costumava ser um critério de escolha.

No dia a dia, é complicado atuar ao lado de um chefe que tem dificuldade de entender novos modelos de negócio, baseados em alta conexão, mobilidade e respostas rápidas ao consumidor. A cena comum é o momento em que funcionários e diretores, ao redor da mesa de reuniões, duelam para entender as propostas ousadas.

Os funcionários notam que o gestor não domina o vocabulário digital, ainda que ande de smartphone nas mãos para cima e para baixo. O chefe mostra-se temeroso em relação a mudanças nos negócios e incapaz de aproveitar oportunidades. Os projetos vão sendo abandonados e seus autores acabam frustrados.

A questão é como se apresentar diante de um chefe resistente às mudanças digitais. Um ponto de partida é desenvolver a habilidade de entender a personalidade de seu chefe e a cultura da empresa.

“Saber ler o ambiente é uma competência que vai ser importante para toda a trajetória profissional. Você deve reconhecer se o líder está disposto a ouvir suas sugestões”, afirma Halina Matos, da Cia de Talentos, empresa especializada em recrutamento e seleção de trainees, de São Paulo.

“A abordagem do diálogo precisa ser respeitosa acima de tudo. Bons líderes são antes de tudo pragmáticos. Se o funcionário apresentar casos e resultados positivos de experiências semelhantes, dificilmente o diretor vai ignorar a proposta”, diz Pedro Waengartner, coordenador de marketing digital da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), de São Paulo.

O trabalho não é um mundo perfeito. Quando deparar com um líder analógico, lembre-se de que lidar com diversidade é outra competência valorizada nas empresas, justamente por situações assim.

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Espelho da Copa

Definitivamente, a energia do esporte reinou soberana quando a bola começou a rolar nos gramados. Partidas decididas aos 46 minutos do segundo tempo, viradas espetaculares de placar, explosões de alegria, de desespero, de profunda tristeza dos jogadores, tudo isso nos mobilizou, nos magnetizou. Que coisa boa ligar a TV e o rádio e ter um jogo de alto nível, nem que fosse para ser degustado só por alguns minutos.

A força e a energia do esporte se apresentaram, na Copa do Brasil, com uma vibração muito especial, já garantindo um caráter único ao Mundial da FIFA realizado aqui no nosso país. Os números de médias elevadas de gols e de público nos estádios compravam isso.
Fora de campo, a hospitalidade dos brasileiros e o espírito de confraternização tomaram conta das ruas. 

Recebemos gente do mundo inteiro e, especialmente, os nossos hermanos, de braços abertos. Os gringos se incorporaram definitivamente à nossa paisagem, muitos passaram até a se interessar por atrações mais características dos moradores locais. E compartilharam toda essa experiência pelo mundo, via Facebook, Instagram & Cia. Ganhamos, assim,  uma onda de visibilidade global positiva gerada por milhares de turistas e até mesmo de jogadores de outros países, a partir de suas próprias vivências por aqui. No nosso monitoramento digital, por exemplo, acompanhamos o alemão Podolski elogiando a beleza das praias do Rio e da Bahia e o meia francês Pogba exaltando a timbalada no Pelourinho, em Salvador, e a arquitetura de Brasília.  

Não se pode, portanto, tirar esse brilho da Copa do Mundo que o Brasil realizou.  

Que esses aspectos positivos contribuam para impulsionar, especialmente, as indústrias do turismo e de eventos, cujas cadeias produtivas a elas associadas geram impactos importantes na economia, com impactos significativos na  qualificação e geração de empregos e na economia criativa.

Ainda assim, não podemos varrer para debaixo do tapete os investimentos em mobilidade urbana que ficaram pelo caminho, os atrasos e sobrepreços na construção dos estádios e a sombra que já começa a pairar sobre a utilização futura _ ou melhor, já a partir de agora _ de várias das enormes e caríssimas arenas erguidas pelo País. Nem mesmo o fato de a Copa não ter sido utilizada para resolvermos, de vez, a triste rotina da violência das torcidas, que, infelizmente, deverão voltar à cena nos nossos campeonatos de futebol.

Uma onda de imagem positiva, portanto, não garante uma reputação consolidada.

Reputação, a gente adquire com o tempo, a partir do que faz e não só do que fala, da coerência entre o que faz e o que fala e mostrando que fez o que havia se comprometido a fazer. O Brasil precisa e merece isso. 

Outra lição, essa das mais emblemáticas, é que futebol é equipe, não talentos individuais. Talentos são vitais, podem decidir jogos. Mas como num país, o que decide a qualidade da partida ou da vida é a soma do conjunto. Sem conjunto, não há estabilidade, não há segurança, não há êxito. Isso porque não há cultura de participação, mas de individualidade. Muitas novas lições estão a caminho. Mas, desde já, uma narrativa que vem nascendo nos estádios: o campeão voltou. Diz respeito, ao futebol. Mas poderia muito bem ser adaptada à sociedade brasileira. E por que não, a confiança no futuro voltou? Passada a Copa, a própria história irá falar mais alto. E com ressonância. Será a vez das urnas falarem. Da consciência de que o futuro se faz no presente.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Tribos urbanas

A peça Tribos encenada pelo Antonio Fagundes e seu filho Bruno conta uma interessante história que se baseia numa família totalmente disfuncional, com pessoas problemáticas e com conflitos emocionais muito maiores que a limitação física de audição do Billy, personagem do  Bruno Fagundes, que é surdo. O pai é um crítico acadêmico sarcástico, de humor ácido, que aproveita todas as oportunidades para subjugar os filhos e a esposa. A mãe é uma mulher ausente, aspirante à escritora, que se omite em grande parte das questões de sua família. A irmã é uma “cantora” frustrada, que não consegue chegar lá, insegura e frágil. O irmão mais novo é superprotetor, se esconde atrás das drogas e trabalha numa tese sobre linguagem e significado. Billy, o primogênito surdo, é, teoricamente, o foco de atenção de todos. Ele desenvolveu sua linguagem oral e aprendeu a fazer leitura labial, convivendo de modo “quase” satisfatório, com um baita esforço, nessa família que grita e praticamente “fala sozinha” o tempo todo. Billy se ressente porque sabe que teve que se esforçar e se adaptar ao modo de ser e de se comunicar de sua família. Ele, deficiente auditivo, aprendeu a comunicação oral apesar de todas as suas dificuldades. Os outros, apesar de ouvintes e falantes “normais”, não se ouvem, não se respeitam, não consideram a opinião uns dos outros... E confundem Billy o tempo todo! Apesar de ser super mais sensato que sua família, ele teve que se adaptar para se aproximar, para não ficar isolado. Teve que forçosamente fazer parte da “Tribo” para interagir com eles! Com a chegada de sua namorada, filha de deficientes auditivos e que está ficando surda também, ele teve acesso à linguagem de sinais. E teve, mais uma vez, que aprender uma nova forma de comunicação, para interagir agora com a namorada! Aprendeu para se comunicar com ela... E resolveu impor essa aprendizagem, na verdade, essa generosidade, à sua família, como condição para que continuassem a se comunicar e a se entender! É claro que essa primeira exigência por parte de Billy causou grande estranhamento, até rejeição. Mas foi a forma que ele encontrou para se impor e se fazer respeitar.

Então, podemos refletir sobre como a nossa sociedade isola as pessoas que são diferentes. A deficiência aqui demonstrada pode ser facilmente substituída por qualquer outra minoria! Um dos princípios da comunicação nos mostra que, para que haja entendimento, é fundamental que as pessoas utilizem o mesmo código. Claro, o código oral é o mais utilizado no mundo! Mas não é o único ou a única possibilidade de entendimento. Quando surge algum tipo de dificuldade, é muito saudável que nos permitamos olhar e ouvir de modo diferente, que busquemos nos abrir para outras possibilidades, que passemos a considerar, também, a forma de ver do outro! Se isso não é levado em conta, a falta de comunicação pode produzir isolamento. Pode impedir que as pessoas se entendam! 

Aqui, muito além das questões de código, também cabe a nossa boa vontade em lidar com outros pressupostos, com outros pontos de vista, com outras formas de julgamento, já que nossos valores e crenças são diferentes. E a diversidade é tão positiva e traz tantas contribuições quando nos dispomos a considerar! Muito além do código, deve haver a vontade de ouvir e de entender o outro. Deve haver a intenção de nos fazermos entender! E é só a partir dessa disponibilidade, dessa generosidade genuína de se expor e de compreender o outro, de acolher, que a comunicação cumpre a sua função primordial: APROXIMAR. Sempre, de qualquer modo que seja, com ou sem qualquer tipo de deficiência.