quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Forças em comum

Tabu em algumas empresas, prática comum em outras, a competição interna pode ajudar a descobrir talentos e levar melhores resultados para a organização - desde que alguns fatores sejam observados.

Faz parte da natureza humana o gosto pela disputa e não há como negar que as empresas são ambientes cada vez mais competitivos. Um estudo publicado recentemente pela psicóloga Betânia Tanure, da Fundação Dom Cabral (FDC), de Minas Gerais, aponta que os executivos paulistas são os mais individualistas, competitivos e menos preocupados com relacionamentos, ou seja, olham mais para suas próprias carreiras do que para as suas equipes.

As estatísticas mostram que quase um terço do tempo no trabalho é gasto com a administração de conflitos, mas, como bem disse o ex-presidente norte-americano John Kennedy, "é nos momentos de crise que eu tenho as minhas melhores idéias". Estaria aí a solução para tornar a competição interna e a administração de conflitos entre colaboradores e equipes um dado positivo para o desenvolvimento profissional?

Para o mestre em Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e autor do livro Ética na gestão de pessoas: uma visão prática, Flávio Farah, "os sistemas competitivos são incompatíveis com o trabalho em equipe, já que a competição interna destrói a cooperação e estimula os atos imorais como a sonegação de informações, a recusa de ajuda a colegas de trabalho e até a sabotagem do trabalho alheio". 
Além disso, continua Farah, ela inibe a aprendizagem e a criatividade, já que as pessoas envolvidas em uma disputa concentram fortemente sua atenção nas concorrentes e em suas reações e, assim, não têm tempo para aprender nem para imaginar novas maneiras de fazer as coisas.

Um exemplo típico de uma competição interna predadora está no filme O Sucesso a Qualquer Preço, de 1992, no qual os atores Al Pacino, Jack Lemmon, Ed Harris e Alan Arkin vivem quatro corretores de uma imobiliária de Chicago, cujo gestor, interpretado por Alec Baldwin, estabelece um concurso de vendas em que o primeiro colocado ganha um prêmio dos sonhos: um automóvel Cadillac Eldorado. Já para o segundo colocado, o prêmio estabelecido é um simples jogo de facas de churrasco e, para os outros, a rua, porque como define o gestor, "nesta empresa não há lugar para fracassados".

Guardadas as devidas proporções, as psicólogas e executivas Ângela Sardelli e Celina Beatriz Gazeti viveram uma situação parecida anos atrás quando, juntas com outra profissional, concorreram a uma vaga de gerente para uma divisão da empresa em que atuavam. "Eu e a Celina já éramos muito amigas e foi um processo muito sofrido na época porque o nosso gestor teve um papel totalmente errôneo. Eram feitas entrevistas individuais com as três e nelas havia um incitamento claro à competição e nós nos sentíamos manipuladas", lembra. Segundo ela, o papel correto de um gestor em uma situação dessas é o de ter maturidade e valores éticos pessoais para saber articular situações e propiciar recursos para que os seus comandados busquem melhores resultados. "Mas sem nunca partir para a manipulação e estimular o individualismo", explica Ângela, que hoje é sócia de Celina na Vox Solutions, uma das quatro empresas que faz parte da joint venture Cliv Solution Group. 

Falando em ética, para o professor Flávio Farah, do ponto de vista ético, a fixação de metas para os colaboradores nas empresas torna-se questionável quando, para o seu cumprimento, aqueles que ocupam posições de liderança na empresa estimulam o vale-tudo com exortações do tipo: "Cumpra suas metas, não importa como"; "Consiga aquele contrato de qualquer maneira"; "Faça o que for preciso para manter esse projeto dentro do orçamento". "Ordens como essas sinalizam aos colaboradores que, para atingir objetivos, quaisquer estratégias são válidas, inclusive as que incluem o uso de meios imorais ou ilegais", diz.

"A partir das histórias isoladas de indivíduos que realizaram coisas que pareciam impossíveis, firmou-se a crença de que o ser humano tudo pode, de que não existem limites para o homem. Essa crença, porém, não passa de um mito, pois, até hoje, ninguém foi capaz de demonstrar logicamente que, para o ser humano, tudo é possível", argumenta Farah, que acrescenta: "Como as empresas têm o costume de fixar metas novas e mais difíceis depois que as anteriores foram cumpridas, os colaboradores enfrentam a cada momento, e sob ameaça de demissão, novos desafios cuja superação é incerta."

Competição interna não é pecado

Para a psicóloga e diretora geral da IDH - Instrumentos de Desenvolvimento Humano, Adriana Fellipelli, "a competição interna existe sim na maior parte das empresas e é bem forte, até porque o ser humano é um ser político e nas corporações, como no nosso País, só é possível governar ou realizar alguma coisa em cima de coalizões, de negociações". Mas o tema ainda é um tabu em várias empresas. "Alguns gestores têm receio de falar sobre o assunto como se fosse um pecado ter competição interna. O ruim é mascarar que ela não existe. Não há nada demais em competir, desde que sejam mantidos os valores éticos, o equilíbrio.
Estimular a competição pode até ser uma boa estratégia desde que sejam claros os limites e as conseqüências dessa prática para os gestores e os seus subordinados."

Adriana também destaca a importância da comunicação nesse processo: "Ela tem de ser clara e objetiva e deve atingir todos os envolvidos. Tem muita gente que não consegue fazer o marketing do que está construindo e isso é da natureza dessas pessoas, então o gestor precisa ter muita atenção para não prejudicá-las no processo. Hoje, em todos os setores, vivemos a guerra da atenção, ou seja, de alguma maneira precisamos chamar a atenção para o que estamos realizando".

Pelas leis do mercado corporativo, a competição entre as empresas é sempre saudável e resulta em ganhos financeiros e de qualidade para o consumidor, mas quando ela ocorre no âmbito interno dessas empresas, aí as coisas se complicam e a controvérsia aparece. Uma definição de Bill Gates aumenta ainda mais a polêmica: "Se houver dois profissionais iguais é porque um está sobrando".

"Quando as regras não são claras ou quando a comunicação ou o estilo do gestor não é o correto, esse processo de competição está fadado a ter pouco resultado efetivo e aí podem aparecer subterfúgios como a sabotagem, por exemplo", explica Fernando Cardoso, sócio-diretor da Integração Escola de Negócios. 

Para o executivo, acostumado a trabalhar com a gestão pelo grupo e com dinâmicas colaborativas e descentralizadas, um dos maiores problemas é quando o líder ou gestor do grupo não permite que ninguém cresça do lado dele. "Aí ele acaba amarrando, engessando todo o grupo, e nivela toda a empresa nele. É muito difícil quando o líder trabalha só na defesa e não no ataque. É como se ele agisse apenas no seu território e não na empresa", diz.

Fernando defende a máxima de que toda equipe é o espelho do seu líder e por isso ele não pode agredir, ele tem de ser político e envolver todas as pessoas no seu projeto. "Isso elimina muito a competição e os conflitos." E essa política envolve inclusive, segundo Cardoso, a comunicação para o grupo. Em vez de dizer "Não falei que isso aqui era ruim?" quando as coisas não vão bem entre os colaboradores, não é mais fácil e tem melhor resultado usar uma expressão como "muda aqui, Fulano, e você vai ver como fica melhor"?

As companhias que hoje estimulam a competição sem levar em consideração o relacionamento entre seus colaboradores das mais diversas áreas pensam apenas no curto prazo e não vêm a sustentabilidade como um valor. Já aquelas nas quais as pessoas são pouco competitivas também vivem uma situação estranha porque a tendência é que todos comecem a trabalhar naquela terrível zona de conforto. Mas como é que um líder consegue ter gente competitiva sem deixar o ambiente insuportável? Parece que só há uma solução: determinar claramente como vai ser a competição na equipe.

Todos concordam que o ponto-chave dessa história é o sistema de gestão de carreira, que precisa ser muito bem formatado. Há, ainda, um outro ponto que gera muita polêmica: ao estimular a competição interna, as empresas precisam considerar que a sua pirâmide organizacional tem, como em todo triângulo, muito menos espaço no seu topo do que na sua base, o que significa claramente que nem todos aqueles que lutam para chegar no topo vão encontrar espaço para atuar.

Ambientes harmoniosos

Especializada em pesquisas de clima organizacional, a consultoria Hay Group tem identificado, cada vez mais, que ambientes profissionais mais harmoniosos tornam-se diferenciais importantes nas empresas para o engajamento e comprometimento das pessoas nos projetos e nos resultados. "Nas corporações que definimos como as 30 melhores empresas para se trabalhar no país, em 63% delas as áreas estão integradas entre si; já para 68%, o espírito interno de equipe é alto; na questão de divisão de idéias e de tecnologia, o índice chega a 76% e quando perguntamos para os profissionais se a equipe recebe apoio de alta qualidade, esse índice bate nos 68%, chegando a 83% quando a questão é se existe boa cooperação de equipe e trabalho no grupo do entrevistado", expõe Luiz Carlos Zanolli, consultor do Hay Group.

Os números reforçam a crença de que o melhor ambiente profissional leva aos melhores resultados porque há uma relação de troca e os colaboradores enxergam perspectivas positivas e plausíveis na carreira e a possibilidade de se expressar, falar e ser ouvido naturalmente. Para Zanolli, "é inevitável fugir da competição interna porque o mundo moderno nos ensina isso a todo instante, mas é absolutamente necessário que esse processo tenha regras claras e muito bem definidas, tanto quantitativa como, principalmente, qualitativamente".

As pesquisas do Hay Group também apontam para uma mudança interessante: a competição interna bem estruturada tem possibilitado que surjam profissionais mais qualificados e preocupados com o seu autodesenvolvimento, enquanto as empresas têm investido mais na construção de ambientes estimulantes ao investimento nas carreiras, nos profissionais e em projetos que provoquem e surpreendam o mercado.

Incentivar de forma saudável

Na ADT Security Services, a competição interna é incentivada e vista como uma ferramenta normal para alcançar resultados para ambos os lados. "As áreas que mais estimulam a competição na nossa empresa são as de vendas e operações. Pela cultura, em vendas é absolutamente normal que essa competição aconteça. 

No departamento de operações, composto pelo atendimento ao cliente, monitoramento, fidelização, retenção, manutenção e instalação são analisados o desempenho individual de cada colaborador e também o resultado final, ou seja, o resultado do departamento é o objetivo final e este tem de ser realizado ou não existem vencedores", explica Patrick Kraus, gerente de operações da ADT Brasil.

Para Marcelo Haddad, gerente-geral da ADT Brasil, um time de alta performance é aquele em que cada um sabe como foi o seu resultado no mês e como ele contribuiu para o resultado final da empresa. "É possível incentivar a competição interna de forma saudável. No nosso modelo, os resultados de diversos meses de competições reforçam as nossas promoções e eles também são utilizados para identificar potenciais talentos dentro das áreas", observa. Haddad cita, inclusive, um caso real e recente que ilustra o modelo utilizado pela empresa: "Em uma campanha de vendas de serviços, identificamos um potencial talento e a partir disso criamos uma área de telemarketing com a aprovação de todos os colaboradores que estavam envolvidos na campanha". Incentivo e humildade em ensinar e aprender são duas outras características decisivas, segundo o executivo, para que um colaborador alcance uma promoção na companhia dentro desse modelo.

Um estudo realizado pelo grupo norte-americano de pesquisa independente The Pew Research Center mostra que para uma nova geração de profissionais - aqueles que pensam em ganhar muito dinheiro e sonham com uma carreira estável -, a competição contribui para a superação e é o motor que estimula para se alcançar metas; no entanto, se exagerada, pode afundar uma carreira potencialmente brilhante.

A política da meritocracia

Pedro Almeida, diretor de gente e de relações corporativas da América Latina Logística (ALL), dona da maior malha ferroviária do Brasil, é um defensor da competição interna normatizada e de um modelo que utiliza a política da meritocracia (o reconhecimento por resultados). "Na nossa empresa temos um modelo muito claro que balanceia bem a competição com a confiança de todos os envolvidos nela", diz. O programa amplo de metas da corporação está aliado a um programa de recompensas variáveis e envolve desde o presidente ao auxiliar de produção, passando, inclusive, pelos maquinistas e motoristas, que são um número expressivo no universo de 4,2 mil colaboradores.

"Não dá para ter um modelo socialista e nem existe um que agrade a todos os colaboradores nos mais diferentes níveis, mas a minha experiência de muitos anos mostra que o modelo no qual as pessoas que fazem mais ganham mais, ainda é o mais saudável", define Almeida, que também destaca outras ferramentas importantes pelas quais a área de Recursos Humanos pode administrar de maneira mais correta a competição interna: "Não podemos deixar que apenas os números definam o desempenho dos colaboradores e das equipes. Por isso, é muito importante utilizarmos ferramentas qualitativas, como a avaliação 360º, que valoriza como competência o bom relacionamento com os outros, o resultado positivo da equipe". 

A proposta do modelo meritocrático é a de reconhecer os funcionários por seus méritos e beneficiá-los a partir de suas ações. A meritocracia é mais uma ferramenta para os gestores, na qual os colaboradores são alinhados aos objetivos da companhia, de forma que todos trabalham com um só foco e objetivo: trazer resultados positivos para as duas partes.

"A meritocracia oferece benefícios inegáveis. Por princípio, em uma empresa que a adota, toda a cultura interna precisa confirmar que a posição do colaborador é resultado das suas realizações individuais. Em geral, isso resulta em uma ênfase na educação formal, no talento e na competência de cada um", explica a diretora de capital humano da Sky, Roseli Parrella.

Outro aspecto importante desse sistema é a avaliação. Ao responsabilizar cada colaborador pelos resultados, a meritocracia exige cobrança e mensuração. "Assim, a avaliação passa a ser contínua e permanente e isso contribui para a evolução tanto da empresa quanto do profissional", acrescenta Roseli, que define que o ambiente de trabalho na Sky é de extrema cooperação e não dá espaço para a acomodação.

Para os gestores que optaram pelo modelo meritocrático e deixaram de lado as culturas de favorecimentos, a recompensa pelos méritos vem, na maioria dos casos, em forma de remunerações variáveis e prêmios, além de um plano de carreira traçado para cada profissional. Em todo o mundo corporativo, a visão é que os EUA, com a sua política de mais produtividade, maiores oportunidades e motivação para os estudantes e profissionais se dedicarem às suas  escolhas, são o melhor exemplo a ser seguido.

Seja por meio da competição interna, da meritocracia ou de qualquer outro modelo que venha a ser adotado, é muito importante que os líderes não se esqueçam de que eles devem ser os protagonistas dessa história e que a área de Recursos Humanos e seus gestores sejam os guardiões dessa cultura.
Itens na agenda

Alguns cuidados na hora de pensar em gerar a competitividade entre os colaboradores:

- Sobre metas: não adianta tentar abraçar o mundo, os objetivos devem ser traçados de modo que sejam desafiadores, mas não impossíveis. Além disso, é preciso prestar atenção ao modo como essas metas são alcançadas. Em tempos de governança corporativa, não basta o quanto, mas o como também tem um peso maior para a construção da imagem de uma empresa.

- Muita atenção aos líderes e gestores. Eles têm um papel importante em prover os recursos necessários para que os colaboradores consigam atingir as metas estabelecidas e, também, para mediar possíveis conflitos entre áreas.

- E por falar em imagem, deve-se levar em consideração, no que se refere à competição entre colaboradores, o fator sustentabilidade. Ou seja: é preciso pensar no longo prazo e deixar a disputa interna correr sem freios pode abreviar a vida de uma área ou companhia.

- Ter uma comunicação clara e objetiva é um bom remédio para muitos dos males corporativos - inclusive para questões de competitividade interna.

- Tudo o que é feito em acordo não sai caro para as duas partes e o mesmo se dá na empresa que deseja estimular a competição entre seus funcionários. Estabelecer regras claras de como será o jogo é um passo importante para bons resultados.

- Para ajudar nesse processo, o bom uso de algumas ferramentas e políticas de gestão de pessoas contam e muito. Ter um planejamento de carreira bem estruturado, por exemplo, é um dos itens que devem constar na agenda. Outro componente de destaque é a meritocracia: saber reconhecer cada um naquilo em que contribui.


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